OPINIÃO de João Esperança Barroca Click here to enlarge

Professor



O português, pela mão dos bonzos do AO90, imbuído do “provincianismo cultural”, parecendo envergonhado das suas origens, da sua história de séculos, caminha orgulhosamente só, de costas voltadas para as outras línguas.


“O Acordo Ortográfico é absurdo desde o início e continua a ser hoje. É um olhar retrógrado e quase imperial sobre a língua em que tem de haver uma unificação para que o português seja entendido lá fora. É falso. O inglês não tem unificação nenhuma, não faz reformas há imenso tempo e é uma língua com duplos tês, duplos eles, cês e tês que as crianças aprendem facilmente na escola.”
Nuno Pacheco, jornalista



“A língua, na sua existência profunda e multissecular, vive antes de nós e sobrevive depois de nós, não podendo ser objecto no seu corpo e no seu espírito, de alterações ocasionais e circunstancialmente políticas que desfiguram a sua ‘lei secreta’, ou seja o ‘seu génio’, como aconteceu com o aberrativo ‘acordo ortográfico’ que constitui um inominável crime imposto politicamente à língua portuguesa.”
Vítor Aguiar e Silva, professor catedrático jubilado, ex-presidente da Comissão Nacional da Língua Portuguesa, vencedor do Prémio Camões 2020



“Não é incrível que se tenha gasto a montanha de dinheiro, papel e tinta numa reforma para unificar o idioma escrito e, mesmo assim, seja possível definir uma palavra ‘escrita em português de Portugal pós-acordo ortográfico’? Os hotéis portugueses deixaram de ter recepção e passaram a atender os hóspedes recém-chegados na receção. […] Evitar filhos em Portugal ficou mais barato: os casais agora economizam um p ao comprar seus anticoncepcionais. Em compensação o país se tornou um pouco mais inseguro: os detetores portugueses não detetam mais a letra c. […] Se isso deixa você decepcionado, conforme-se: se você fosse português, estaria no máximo dececionado. Se bem que não seria uma decepção temporária; seria uma deceção perentória.”
Ricardo Freire, escritor e publicitário brasileiro




um aspecto poucas vezes mencionado na abordagem às nefastas consequências do AO90 é o afastamento do Português Europeu em relação às línguas que lhe são mais próximas


Vejamos, na sequência da última citação em epígrafe, o caso da palavra recepção, com origem no latim receptione. Como se escreve essa palavra em diversas línguas das mais usadas no mundo? Rezeption, em alemão; recepcija, em bósnio, em croata e em sérvio; retseptsiya em búlgaro; recepció, em catalão e em húngaro; reception, em dinamarquês, em inglês e em sueco; receptión, em espanhol (castelhano) e em galego; akcepto, em esperanto; resepsje, em frisão (língua germânica falada na Frísia, nas Ilhas frísias e na costa alemã do Mar do Norte); resepsión, em grego; resepsyon, em haitiano; resepsi, em javanês (língua falada em Java); risepsana, em marata (língua falada no Centro e no Sul da Índia); resepsjon, em norueguês; receptie, em romeno; recepce, em checo; e resepsiyon, em turco.

Com o termo recepcionista acontecerá o mesmo? Confirmemos: resepsionist, em albanês; rezeptionist, em alemão; resepsyonist, em azeri (língua falada no Azerbaijão); recepcionar, em bósnio e em sérvio; retseptsionist, em búlgaro; recepcionista, em catalão, em espanhol (castelhano) e em galego; receptionist, em corso (língua falada na Córsega), em dinamarquês, em inglês, em maltês e em sueco; recepcionarka, em croata; recepcný, em eslovaco; receptorka, em esloveno; akceptisto, em esperanto; réceptionniste, em francês; resepjoniste, em frisão; risepsanis?a, em guzerate (língua falada no estado da Índia com o mesmo nome), em marata e em nepalês; resepsyonis, em haitiano; receptioniste, em holandês; recepciós, em húngaro; resepsionis, em indonésio, em javanês e em sundanês (língua falada no Arquipélago de Sunda); adetto alla reception, em italiano; réceptioun, em luxemburguês; recepcioner, em macedónio; ?isap?anis??, em malaiala (língua dravídica falada no Malabar, Índia Ocidental); resepsjonist, em norueguês; risaipasanisa?a, em panjábi (língua falada no Punjab ou Penjab); recepjonista, em polaco; receptioner, em romeno; recepcní, em checo; risep?anis?, em telugo (língua falada no Sudeste da Índia); e resepsiyonist, em turco.

Variadas são as línguas que têm orgulho nas suas (ainda que diminutas, por vezes) raízes latinas.

Não olvidemos que, nestas duas palavras e em outras da mesma família, o que era igual passou a ser diferente, pois no Brasil a consoante continua a ser grafada. É aquela coisa da “unidade essencial da língua”, percebeis?

Olhemos, neste momento, para a palavra concepção, termo com origem no latim conceptione. Como se escreve nas outras línguas? Konceptim, em albanês; konzeption, em alemão; konsepsyia, em azeri; concepció, em catalão; cuncepimentu, em corso; concepcia, em eslovaco; concepción, em espanhol (castelhano) e em galego; koncepto, em esperanto; kontseptsioon, em estónio; conception, em francês, em inglês e em irlandês; k’ontseptsia, em georgiano; konsepsyon, em haitiano; conceptie, em holandês; konsepsi, em javanês e em sundanês (língua falada no Arquipélago de Sunda); koncepcija, em letão; konzeptioun, em luxemburguês; konsep, em malaio; koncepiment, em maltês; koncepcja, em polaco; conceptie, em romeno; konsepsija, em tajique (língua oficial do Tajiquistão); e kontseptsiya, em uzbeque (língua do Uzbequistão). Esta exaustiva recolha leva-nos a concluir, tendo presente o parágrafo inicial do AO90, que as ortografias do albanês, do azeri, do estónio, do haitiano, por exemplo, constituem um passo para a defesa essencial das suas línguas e para o respectivo prestígio internacional.

Usando a informação do Portal da Língua Portuguesa — e convém sempre identificar a fonte acordizada, pois cada uma tem a sua própria versão, como já demonstrou Manuel Matos Monteiro na obra Por Amor à Língua — verificamos que concepção, concepcional, concepcionário, conceptaculífero, conceptividade e conceptivo mantêm a consoante no Brasil, mas perderam-na em Portugal, criando os termos conceção, concecional, concecionário, concetaculífero, concetividade e concetivo. Observamos ainda que foram criadas, apenas em Portugal algumas duplas grafias, como: conceptáculo / concetáculo, conceptibilidade / concetibilidade, conceptismo / concetismo, conceptista / concetista, conceptístico / concetístico, conceptiva / concetiva, conceptível / concetível, conceptual / concetual, conceptualismo / concetualismo, conceptualístico / concetualístico, conceptualização / concetualização / conceptualizar / concetualizar, conceptualmente / concetualmente. É assaz curioso verificar a coerência (ou a falta dela!) da existência da dupla grafia em conceptiva / concetiva (substantivo) e o mesmo não ocorrer em conceptivo / concetivo (adjectivo). Uma pequena gralha, dirão alguns. É por estas e por outras, como diz o povo, que entendemos que a maior parte dos acordistas são ornitólogos, com especial predilecção por essas aves passeriformes da família dos Corvídeos. Já António Emiliano, linguagista e professor universitário, tem outra opinião, afirmando peremptoriamente que os linguistas envolvidos na redacção do AO90 não tinham, efectivamente, competência para essa tarefa.

Passemos agora ao verbo detectar, derivado do latim detectu. Como se grafa em diferentes línguas? Detektatzeko, em basco (aquela língua, segundo Aldous Huxley, que “é o desespero dos eruditos e a mais misteriosa de todas as línguas conhecidas”); detect lotehphoet, em birmanês; detectar, em catalão, em espanhol (castelhano) e em galego; detekti, em esperanto; détecter, em francês; detecteren, em holandês; detekt, em iídiche (língua, com origem no Centro e no leste da Europa, falada pelas comunidades judaicas disseminadas pelos vários continentes); detect, em inglês; ndeteksi, em javanês; z’entdecken, em luxemburguês; detecta, em romeno; detekciju, em sérvio; ngadetetksi, em sundanês; e detekovat, em checo. Detecta-se em toda a Península Ibérica (com excepção de Portugal) e no Brasil, mas deteta-se em Portugal. É, outra vez, a questão da “unidade essencial” da língua.

Exemplifiquemos, agora, com o termo decepção, derivado do latim deceptione. Temos aqui um número menor de línguas a manter a consoante com raízes etimológicas, mas, como se pode comprovar, à excepção de Portugal, toda a Península Ibérica grafa essa consoante. Temos, então, decepció, em catalão; decepción, em espanhol (castelhano) e em galego; déception, em francês; e desepsyon, em haitiano.

Para finalizar, vejamos a palavra peremptório, do latim peremptoriu. Serão as crianças de 6-7 anos dos outros países, sem um enorme esforço de memorização, capazes de a escrever, com a tal consoante que (para os acordistas) só complica? Em albanês, em alemão, em frisão, em gaélico escocês, em galês, em haitiano, em inglês, em irlandês, em javanês, em luxemburguês, em malaiala, em malgaxe (língua falada em Madagáscar), em quiniaruanda (língua falada no Ruanda, onde é, a par do francês e do inglês, língua oficial), em sundanês, em tailandês, em tâmil (língua dravídica falada no Norte e no Oeste do Sri Lanca e no Sul da Índia), em turcomeno (língua falada no Turquemenistão) e em xona (língua falada em partes de Moçambique e do Zimbabué) escreve-se peremptory; em canarim (língua dravídica falada na região indiana de Canará), peremp?ari; em francês, péremptoire; em guzerate e em nepalês, peremp?ori; em iídiche, peremptori; em marata, peremp?ari; em romeno, peremptoriu; e em telugo (língua dravídica falada no Sudeste da Índia), peremp?ori.

Também aqui, ao invés do afirmado pelos paladinos do AO90, o que era igual passou a ser diferente, pois no Brasil utilizam-se as grafias perempção, perempto, peremptoriamente, peremptoriedade e peremptório, enquanto em Portugal se usam as grafias aberrantes e desfiguradas perenção, perento, perentoriamente, perentoriedade e peremptório.

Como se depreende das amostras, o português, pela mão dos bonzos do AO90, imbuído do “provincianismo cultural”, parecendo envergonhado das suas origens, da sua história de séculos, caminha orgulhosamente só, de costas voltadas (“de costas voltadas, não se vê o futuro”, canta Pedro Abrunhosa) para as outras línguas, que, em grande parte, privilegiando a etimologia, simplificam, elas sim, a compreensão e a aprendizagem. Faz lembrar a história dos pais do soldado que acham que o seu filho é o único a marchar com o passo certo no desfile militar, enquanto, para eles, todos os outros soldados marcham desordenados.



















































in PÚBLICO.pt